Israel Souza[i]
As eleições de 2024 conformaram novo quadro político, redesenhando a correlação de forças que tínhamos até então. Além da confirmação e da ampliação da força dos partidos que compõem o “centrão”[ii], essas eleições mostraram, de modo insofismável, o enfraquecimento político de Bolsonaro. E essa é a principal novidade do cenário atual, sobre a qual versaremos nas próximas linhas.
Em primeiro lugar, cabe destacar a expectativa do PL, partido de Bolsonaro, de eleger 1.000 (mil) prefeitos nestas eleições[iii]. Apurados os votos, conseguiu eleger apenas 517, pouco mais que a metade do esperado. Não é um número desprezível. Sei. Mas convenhamos: o resultado ficou muito aquém do que anunciaram. Ou seja, as lideranças do PL superestimaram seu poder eleitoral. Um choque de realidade! Bolsonaro e seu partido não são tudo o que pensam que são.
Esse erro de cálculo ficou visível em diversos estados e cidades. Quanto a isso, um dos casos de maior relevo foi o que ocorreu em Goiás. Ronaldo Caiado (União Brasil), que até pouco tempo fazia parte das hortes bolsonaristas, verbalizou com todas as letras: “A crítica que faço aqui ao Bolsonaro é que ele devia, em vez de ficar fechado dentro de uma estrutura apenas do PL e achar que o 22 constrói eleição em todos os 5.569 municípios, devia ter tido humildade de ouvir as pessoas que também o apoiaram nos municípios”[iv].
As palavras de Caiado denunciam a arrogância e obtusidade de Bolsonaro. O mito não é invencível, como pensa. Vale ressaltar que, no caso em tela, ele não perdeu para a esquerda ou para o campo progressista, adversários seus. Ele perdeu para alguém da direita, seu campo político. Localmente, um governador de direita demonstrou ter mais força que Bolsonaro.
Após impingir tal derrota ao mito, Caiado foi mais longe em sua crítica, afirmando que “Ninguém aguenta mais essa conversa cansativa, como se houvesse um único jeito de pensar. Esse radicalismo só afasta as pessoas”. E mais: “As pessoas querem emprego, saúde, educação. Não querem ouvir mais sobre ‘comunistas versus patriotas’. Esses discursos são cansativos e distantes das reais necessidades do povo”[v]. Para concluir a ruptura e a afronta ao mito, Caiado lançou sua pré-candidatura a presidente[vi].
Cumpre sublinhar. Isso não é coisa de somenos. É uma novidade no cenário político atual. A direita não está mais refém de Bolsonaro. Lembremos que, desde que ele ascendeu como figura proeminente nesse campo, tudo foi esterilizado a seu redor. E todos os que rompiam com ele tinham como destino certo o limbo político. Foi assim com Bebiano, Alexandre Frota e Joice Hasselmann, para citar apenas alguns. Todavia, agora, no campo da direita, alguém venceu, afrontou e humilhou Bolsonaro, sem meias-palavras.
Por respeito à cronologia dos fatos, é forçoso dizer que isso não começou agora. Pablo Marçal (PRTB) foi quem abriu esse caminho. Como sabemos, o coach disputou exitosamente a base bolsonarista. Sejamos claros e precisos: essa não foi uma luta sem Bolsonaro, mas contra Bolsonaro.
O mito não conseguiu controlar o voto de seus seguidores. Ficava claro, desde aí, que Bolsonaro não apenas não controla a direita – campo de forças mais vasto que o bolsonarismo -, mas, inclusive, não controla nem mesmo o bolsonarismo.
Esperto como só ele, Marçal usou o bolsonarismo contra Bolsonaro, que ficou sem saber o que fazer. Apalermado, o mito não soube sequer defender Carlos Bolsonaro, que foi chamado de “retardado” por Marçal nas redes sociais.
Marçal disputou – exitosamente, frisamos – o bolsonarismo com Bolsonaro, rachando sua base. Bolsonaro já tem domínio absoluto nem na direita nem na extrema direita, seu campo cativo. Sua base já não é bem sua, como havia sido até pouco. Num futuro próximo ou mesmo agora, Marçal pode fecundar um novo ramo da extrema direita, tomando parte considerável do território político de Bolsonaro, enfraquecendo-o ainda mais.
Por outro lado, ainda nesse processo eleitoral, Tarcísio de Freitas (Republicanos) mostrou ter força política, ao pavimentar, praticamente sozinho, a vitória de Ricardo Nunes (MDB) em São Paulo. Como sabemos, Bolsonaro entrou sem entrar nessa campanha. Em parte, por sua alta rejeição na cidade e, em parte, por burrice e escrotidão mesmo. Acovardado com um; omisso com outro. Assim, o mito perdeu com Marçal sem ter ganhado com Nunes.
Coube a Tarcísio a tarefa de defender a candidatura de Nunes. Defendeu e saiu vitorioso. Isso fortaleceu o governador de São Paulo como um político que, mesmo vindo das fileiras bolsonaristas, tem luz própria. Some-se a isso o fato de, com sua índole privatista, ter conquistado a simpatia das personificações capital, sempre sedentas para comprar o patrimônio público a preço de banana.
Ora, se Marçal mostrou – por baixo – que é possível ter acesso à base bolsonarista sem pedir a benção de Bolsonaro, Tarcísio mostrou – por cima – que é possível ter acesso à elite sem pagar pedágio ao mito. Ambos os casos indicam, sobejamente, que esse messias não é assim tão indispensável para fazer certas intercessões, nem para baixo nem para cima.
É mais que provável que as urnas apenas tenham demonstrado a fraqueza de Bolsonaro que já é perceptível nas ruas. Todos devem ter notado que ele já não vem mais fazendo micaretas golpistas. Tomando as últimas como referência, ficou claro que já não tinham mais a mesma força. Sem sombra de dúvida, isso se deve, largamente, ao fato de que Bolsonaro perdera o superpoder que o cartão corporativo presidencial lhe conferia.
Milionário, Malafaia até bancou algumas. Mas não poderia arcar com eventos assim sem que, em algum momento, sentisse o peso no bolso. Os fiéis não iam gostar de ver o dinheiro de suas ofertas e dízimos bancando micaretas golpistas. Além disso, o pastor ficou desgostoso com o capitão delinquente. Num surto de franqueza e lucidez, coisa incomum, o pastor reconheceu e expôs a covardia de Bolsonaro.
Depois de, a seu modo, tê-lo chamado de menino buchudo e chorão, indagou: Que porcaria de líder é esse?[vii]
Para Bolsonaro, o cenário não é nada alentador. Desse modo, não surpreende que, desesperado, agora apele ao “coração” de Lula[viii], rogando por anistia aos golpistas do 08de janeiro – entre os quais, ele está, como mentor e entusiasta.
Qualquer um com amor próprio e dignidade não faria o que o mito está fazendo. É patético! É constrangedor! Entretanto, ele sabe que, se for preso, seu capital político que vem diminuindo paulatinamente pode ser reduzido a nada. Se, já agora, solto, ele vê quem até ontem estava sob suas asas avançar sobre seu território político, imaginem o que vai acontecer caso seja preso – como eu, por uma questão de justiça, espero que seja.
O mito está nu. E não apenas isso. Com fraturas expostas, sangra em praça pública. Agoniza, enquanto os corvos que ele alimentou reivindicam seu trono e se lançam sobre sua carne putrefata. Que se refestelem!
[i] Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).
[ii] Partidos do Centrão vão comandar 63% das prefeituras do país | CNN Brasil
[iii] Partido mais votado, PL fica distante da previsão de mil prefeituras
[iv] ‘Bolsonaro foi extremamente deselegante’ com seus apoiadores, diz Ronaldo Caiado | Blog da Andréia Sadi | G1
[v] Candidato a presidente, Caiado diz que Brasil se cansou de Bolsonaro | Brasil 247
[vi] Caiado: Sou pré-candidato a presidente para 2026 e não nego
[vii] Malafaia dispara contra atuação de Bolsonaro nas Eleições 2024: ‘Que porcaria de líder é esse?’ – Política – CartaCapital
[viii] Bolsonaro pede a Lula ‘coração’ para anistiar golpistas de 8/1 | Política: Diario de Pernambuco