A crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 e seus efeitos devastadores, agravados nas últimas semanas, continuam a ocupar o cenário do cotidiano de todos os cidadãos brasileiros.
Em nossa capital, Rio Branco, a situação ainda é mais assustadora, pois os números de infectados e mortos pelo vírus não param de subir, apesar das medidas de enfrentamento adotadas pelo poder público, e, do início do processo de imunização.
Obviamente, todos os esforços do aparato estatal do Acre estão concentrados em conter a pandemia, principalmente, através da célere vacinação da população, contudo outros problemas sociais, como a violência, continuam a interferir desumanamente na vida da grande maioria dos rio-branquenses, em especial, daqueles que vivem nas regiões dominadas pelas facções criminosas.
Assim, sem qualquer pretensão em desviar a problemática da pandemia, e, alimentando o sentimento de confiança de que logo nossa nação será totalmente imunizada, suscitamos questões relacionadas a atuação das facções criminosas em nossa capital, que são totalmente desconhecidas pela sociedade de uma forma geral, e, acabam dificultando ainda mais o dia a dia do rio-branquenses em tempos tão difíceis.
No Acre, a instalação das organizações criminosas remonta ao ano de 2012, quando o Primeiro Comando da Capital (PCC) começou a propagar sua rede de negócios ligadas ao narcotráfico recrutando seus primeiros integrantes em Rio Branco. Apesar de o fenômeno expansionista ter sido iniciado no ano de 2011, nos estados do Paraná e Mato Groso do Sul, e, somente depois ter sido disseminado em outros estados da federação com fronteiras internacionais, projeção que estimulou grupos de criminosos locais a fundarem suas próprias organizações com o objetivo de conter esse avanço.
No começo do ano de 2013, apesar de muitas autoridades estatais locais tentarem esconder a realidade do início da atuação da organização paulista em Rio Branco, a Polícia Civil e o Ministério Público, após três meses de investigação, deflagraram a operação “Diáspora” – efetuando a prisão de 39 (trinta e nove) acreanos “batizados” pelo PCC.
No dia 12 de junho do ano de 2013, foi oficialmente criada à organização criminosa acreana intitulada de “Bonde dos 13”, ou simplesmente “B-13”, que pouco tempo depois passaria a ser aliada do PCC.
Ainda em 2013, a mais antiga organização criminosa do Brasil, o Comando Vermelho (fundada em 1979) começou a atuar no Acre realizando seus primeiros “batismos”.
Entre 2015 e 2016 as facções criminosas, como popularmente são conhecidas, já estavam plenamente instaladas e com centenas de acreanos recrutados. Nesse período, o conflito de interesses entre o PCC e CV, relacionados ao domínio territorial de rotas do narcotráfico, culminou na cinematográfica morte do criminoso Raffat, no Paraguai, conhecido como o “Rei da Fronteira”, episódio responsável pelo “estopim” de uma guerra brutal entre as organizações no Acre, que perdura até os dias atuais.
Os efeitos das batalhas travadas diariamente pelas facções em Rio Branco, uma das menores capitais do país, onde era comum os habitantes permanecerem sentados em cadeiras em frente das casas para conversar com vizinhos, foram rapidamente deixando toda a sociedade perplexa.
A partir do ano de 2016, foram registrados centenas de homicídios praticados nas formas mais cruéis, como execuções e esquartejamentos, além de tiroteios, roubos e até mesmo chacinas, rotina que se tornou “normal” no bairros carentes de Rio Branco, apesar da diminuição de alguns índices de criminalidade durante o período da pandemia, até porque é evidente que a guerra das facções não chegou ao fim.
Em decorrência do aumento desenfreado da violência, da ausência de políticas públicas de prevenção, da falência do sistema carcerário local, da ineficácia do sistema jurídico penal, da desestrutura dos órgãos estatais, da falta de controle na fronteira, da desigualdade social, da falta de educação, do desemprego, e, tantos outros motivos afins, o conflito das facções trouxe para a maioria da população de Rio Branco muito mais do que insegurança.
Implantou-se na capital acreana, Rio Branco, um verdadeiro “poder paralelo”, acima dos poderes legislativo, executivo e judiciário. As facções começaram a prover nas suas áreas de dominação suas próprias regras de comportamento atingindo a segurança dos indivíduos, o patrimônio, as relações domésticas e amorosas, além de outras necessidades básicas dos moradores, sempre utilizando leis e princípios ligados aos seus interesses, e, realizando julgamentos, inclusive com pena de morte.
Esse poder paralelo se exterioriza no dia a dia dos rio-branquenses nas mais diversas formas. Inicialmente, destacamos a crescente evasão escolar de crianças e adolescentes que vivem nas regiões comandadas pelas facções. Muitos alunos moradores de determinado bairro são proibidos de frequentar as escolas (públicas ou privadas), que são estabelecidas em áreas vizinhas dominadas por facções rivais.
Também é comum acontecer conflitos entre alunos integrantes de facções dentro do ambiente escolar. Além disso, os pais têm que escolher entre a integridade física do filho ou a frequência escolar, pois muitos sofrem atentados ou crimes nos trajetos até as escolas.
Em relação à segurança, constitucionalmente, um dever do Estado, a realidade é outra. Com a justificativa de impedir atos de violência, e, a prática de crimes nessas regiões, onde o “poder paralelo” já é aceito como única alternativa para os cidadãos, as facções impõem “toque de recolher”, além de realizar a cobrança de taxas semanais/mensais para a maioria das famílias e comerciantes.
Na perspectiva econômica, o poder paralelo é demonstrado por meio do despejo com a consequente posse dos imóveis, daqueles indivíduos que descumprem as regras impostas pelas facções, fato que ocasiona duas situações corriqueiras. A primeira delas é a venda do imóvel para enriquecimento ilícito por meio de contrato de compra e venda ilícito, e, a segunda, a utilização do bem com “ponto” de venda de entorpecentes e afins.
Entre tantas outras situações alimentadas pela atuação das facções em Rio Branco, uma delas tem natureza bizarra. A existência de um verdadeiro “tribunal do crime” que aplica penas diversas diariamente para os moradores que descumprem as regras de comportamento impostas coercitivamente. As punições incluem advertência, expulsão do bairro, tortura e até a morte.
Nunca será fácil compreender a dimensão integral do problema provocado pelas facções criminosas em nossa capital. Porém, é extremamente relevante que todos possam perceber a complexidade do cenário social em que vivemos, principalmente diante de um poder paralelo que continua plenamente ativo mesmo durante a pandemia.
Sob a ótica estatal, podemos afirmar que a maioria dessas ações executadas pelas facções não chegam sequer ao conhecimento dos órgãos de segurança pública e da Justiça, e, quando chegam, pouco é feito, diante da gravidade dos problemas e da ineficácia dos poderes públicos, apesar de todo o investimento financeiro no combate ao crime organizado e empenho das forças policiais.
Continuamos acreditando que o poder público possa conter o poder paralelo originado pela atuação das facções criminosas em Rio Branco, destituindo todas os seus estigmas. Entretanto, até lá, somos obrigados a acompanhar muitas cenas lastimáveis de violência, e, perder muitas vidas.