Quando o Antropólogo Patrício Carneiro de Araújo, lançou sua tese de Doutorado Candomblé sem sangue? Pensamento ecológico contemporâneo e transformações rituais nas religiões afro-brasileiras (Editora Apires – 2024), trouxe um debate importante no que tange a preservação das feituras e iniciações dos yaôs das nações que constituem o panteão afro-brasileiro. Carneiro, passou a apresentar fatores que vão além da preservação de uma tradicionalidade, ao mesmo tempo, nos leva a um debate sobre o abate sagrado de animais que fazem parte do rito litúrgico religioso.
Um dos principais alicerces da iniciação religiosa, é o uso de sangue animal nas feituras, o que representa o nascer para uma nova vida na sacralização e esse sangue imolado, traz consigo uma teia de significados e mistérios (utilizando o termo hermenêutico de Geertz), repesentando um elo entre o recém-nascido na religião, e ao mesmo tempo, um oferenda vital para os Orixás, Inkisses e Voduns, que são as representações ancestrais da força da natureza. Além disso, o sangue imolado representa o axé, a força vital necessária para equilibrar e ativar os rituais religiosos.
Ao se discutir a utilização de folhas e sangue em rituais de iniciação do Candomblé, encontramos um certo conflito existente entre os Orixás Ossaim (deus das plantas) e Exú (deus do movimento, da comunicação e da dinâmica). Este conflito envolve disputas sobre qual divindade tem a primazia nos rituais e a importância nas interpretações teológicas da fé. Pois, ao mesmo tempo em que se reza que sem folha não tem nada, sem sangue, não tempos equilíbrio, e esse conflito fica cada vez mais evidentes nas disputas por um certo protagonismo nas modernizações que vêm ocorrendo em terreiros no Brasil.
Esse modelo de neo-candomblé que vem abolindo o uso do sangue o sacrifício de animais, foi instituído pela Yalorixá Dobana Boressa lá em 2017, tem suas raízes mais profundas na figura emblemática do babalaô Agenor Miranda Rocha, e vem ganhando cada vez mais adeptos (e conflitos) no Brasil.
A estrutura desse culto do Candomblé sem sangue, chega ao Brasil através de influências de outras religiões de diásporas africanas, como o culto a Yezan cubano, além da ecoteologia católico-franciscana que influenciou novas formas de práticas afro-religiosas atuais. Ao se unir a um modelo de Candomblé que deixou de lado o sacrifício de animais, o culto Yezan parece apresentar um novo desafio para as tradições afro-religiosas, ao mesmo tempo em que se estabelece como mais uma opção religiosa nas grandes cidades brasileiras
Para alguns, o Candomblé sem sangue, parte de um princípio de adaptação moderna, que buscam reinterpretar os ritos para que sejam mais compatíveis com valores contemporâneos, principalmente com os direitos dos animais. Essa adaptação vai além do sacrifício, pois além do sangue de animais, demais partes do sacrifício utilizadas nas oferendas simbólicas, passam a ser substituídas velas, flores, cantos, danças, e outros elementos rituais.
Um outro fator, dessa adaptação moderna, são as Influência do sincretismo e do urbanismo, pois, em grandes cidades, a prática de sacrifícios pode ser dificultada por questões legais, sanitárias ou sociais. E principalmente de fatores criados pelo estigma do sacrifício ritual
Nesse bojo religioso, os conflitos são constantes entre o tradicional e o moderno, tanto que, para alguns sacerdotes e estudiosos do tema, não há Candomblé verdadeiro sem sangue, sem o sacrifício animal, pois o sangue é fundamento espiritual da iniciação na fé. Ao mesmo tempo, algumas correntes defendem como possível modernização da religião na modernidade. O certo é que o tema tem levado a debates constantes entre adeptos da religião em correntes que defendem a manutenção de uma tradição e correntes mais abertas a interpretações contemporâneas.
Com isso, importante salientar que a prática do Candomblé sem sangue não é uma corrente oficial ou unificada, mas sim uma tendência de adaptação que gera discussão sobre até que ponto é possível preservar a essência do Candomblé sem o uso de sacrifícios animais. A questão envolve temas como tradição, ética, identidade religiosa e convivência com a sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, traz resistências aos adeptos de uma fé tradicional de culto aos Órixas, Inkisses e Voduns.
Luciney Araújo Leitão – Ney. É Professor de Sociologia EBTT no – CAp/UFAC, Membro Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena (Neabi/Ufac), pesquisador membro do Observatório da Associação Brasileira de Ciências Sociais ABECS