Por: Danilo Rodrigues do Nascimento
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 abriu novas possibilidades no campo da saúde, da educação, das demarcações de terras, entre outras reivindicações dos povos nativos. Antes da Constituição Cidadã, os povos indígenas eram representados, como “obstáculos ao progresso”, improdutivos e assimilados à sociedade brasileira. Os movimentos indígenas brasileiros foram fundamentais para consolidar uma história a contrapelo 1 dessas ideias e trazer à tona discussões voltadas para as questões indígenas. Por isso, o foco central deste texto é destacar as terras indígenas como espaços ancestrais e de (re)existências dessas populações. Assim, o termo espaço ancestral foi articulado a partir da observação de como os povos nativos trazem para o centro do debate a valorização cultural e linguística dos mais velhos, que são os grandes portadores das sabedorias ancestrais. Essas comunidades são produtoras e executoras de táticas e estratégias de sobrevivência contra toda forma de opressão. Por isso, a palavra (re)existências foi utilizada, pois essas comunidades sempre resistiram e sobreviveram as formas de violências coloniais.
Na década de 1980, muitos povos passaram a se organizar politicamente com o ideal de protagonizar suas lutas e reivindicações, principalmente no que dizia respeito as demarcações das terras indígenas. Eles desenvolveram, por exemplo, a União das Nações Indígenas (UNI), em 1980, que ecoou muitas vozes de denúncias e resistências dessas comunidades em vários lugares, como nas conferências da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), na Costa Rica, e no Congresso Indígena
da Colômbia (2002). Essas movimentações políticas, dos povos nativos, consolidaram muitas parcerias com instituições governamentais e não governamentais, na elaboração de políticas públicas em favor das diversidades de línguas, culturas e identidades dos povos indígenas.
Hoje, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no censo de 2010, no território brasileiro existem aproximadamente mais de 817 mil indígenas, distribuídos em mais de 688 terras indígenas e algumas áreas urbanas. Há também dados estatísticos de 82 grupos que ainda não foram contatados (vale destacar que esses dados apresentados estão defasados, pois o IBGE não realiza uma nova pesquisa desde 2010). Esses dados apresentados demostram a existência de múltiplas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições dessas comunidades, e a importância do direito sobre suas terras,
que coloca essas populações em contatos com o pluriverso dos animais, da fauna e flora, da agricultura, dos roçados, entre outras dimensões.
Os meios midiáticos, atualmente, trazem muitas notícias e denúncias de invasão das terras indígenas. No ano de 2022, o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados em decorrência de defesa das terras indígenas e denúncias contra garimpeiros, que usurpam os territórios indígenas. Assim, é preciso mencionar que mesmo com os avanços na Constituição, essas populações precisam estar vigilantes, pois os direitos dos povos indígenas no Brasil ainda são muito desobedecidos. Por isso, a antropóloga brasileira Manuela Carneiro da Cunha, no livro “Índios no Brasil: História, direito e cidadania”, destaca que “o que é hoje o Brasil indígena são fragmentos de um tecido social cuja trama, muito mais complexa e abrangente, cobria provavelmente o território como um todo” (2012, p.13). Este fragmento de texto apresenta um ponto muito importante: o de mostrar como essas terras brasileiras sempre foram habitadas, mas que após o processo colonizatório, foram construídas diversas imagens estereotipadas e preconceituosas sobre os povos indígenas. Por exemplo, em nossa sociedade ainda ouvimos frases como: “por que índio quer terra?”, “os índios vivem na mata”, “os índios são bêbados e
sujos”, “os índios são violentos”, entre outras, falas essas que tem por único objetivo o domínio do território por parte dos colonizadores. Na contramão dessas frases, este texto busca trazer para o centro do debate uma perspectiva outra em par com as ancestralidades e resistências indígenas.
As terras indígenas têm uma importância muito grande para essas populações, porque é no terreiro da aldeia que acontecem os fluxos de saber-fazer dessas comunidades. Como destaca Krenak (2019, p.20), “o governo cumpra seu dever constitucional de assegurar os direitos desses grupos nos seus locais de origem, identificados no arranjo jurídico do país como terras indígenas”. Assim, compreender a importância das políticas de terra no Brasil como forma de preservação dos modos de vidas dessas comunidades é mergulhar em um rio de diversidades, pois esses territórios ancestrais estão em conexões entre homens, animais e plantas.
O professor indígena Daniel Munduruku destaca, que “a historiografia oficial tenta justificar tais políticas – que vitimizam principalmente crianças, velhos e mulheres – através do argumento de que eles eram preguiçosos e indolentes e não gostavam de trabalhar, omitindo que a imposição desses trabalhos representava uma violação à organização social e à soberania dos povos nativos” (MUNDURUKU, 2012, p.29). Deste modo, as políticas governamentais precisam estar em sintonia como uma perspectiva outra de representação dos povos nativos, e principalmente, das terras indígenas. Atualmente, é consenso entre
pesquisadores e especialistas em educação escolar indígena a necessidade de a escola desenvolver atividades voltadas para a valorização linguística, identitária e territorial dessas comunidades. Por isso, esses professores indígenas são produtores e executores de materiais didáticos pedagógicos, de planos curriculares e exercícios voltados para a valorização dos territórios ancestrais, como destaca os estudos de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
Assim, destaca Kopenawa: “o valor de nossa floresta é muito alto e muito pesado. Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. […] Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e também todos os xapiri e os humanos têm um valor importante demais para todas as mercadorias e o dinheiro dos brancos. Nada é forte o bastante para poder restituir o valor da floresta doente. Nenhuma mercadoria poderá comprar todos os Yanomami devorados pelas fumaças de epidemia. Nenhum dinheiro poderá devolver aos espíritos o valor de seus pais mortos!” (2015, p.355).
Essas populações estão em movimentações de resistências e preservação desses territórios ancestrais, pois elas enfrentam constantemente ameaças de madeireiros, garimpeiros e aqueles que acham que as terras indígenas são improdutivas. A título de exemplificação do processo de preservação dos espaços ancestrais, os Huni Kuĩ, povos nativos que habitam a região do Acre (Brasil) e do Peru, desenvolvem uma educação escolar voltada para nove áreas de saber-fazer, por exemplo, Hãtxa Kuĩ Yusĩti (ensino de língua
(alfabetização)); Miyui Xarabu (histórias); Mimawa/Manũ Xarabu (músicas e danças); Mimã Xarabu (artes masculinas e femininas); Rau Xarabu (plantas medicinais); Haska nũ hiwea xarabu (ciências sociais), Ni Inũ yuinaka xarabu (flora e fauna); Nukũ mibã xarabu (produção agrícola) e Yuxibu xarabu (fenômenos ou espíritos). Essas áreas estão presentes na Base Comum Curricular Huni Kuĩ, voltadas para uma escola bilíngue, específica e intercultural, como é assegurada pela Lei 9394/1996.
Nesse sentido, as táticas e estratégias dessas populações está na retomada de suas ancestralidades linguísticas, territoriais e culturais, no sentido de manifestarem suas cosmologias e histórias em par com esses espaços ancestrais. Como vimos, as terras indígenas estão para além de espaços “capitalizados”, ou seja, regiões vista como mercadoria. Mas, esses escritores indígenas têm buscado mostrar o valor da terra para essas comunidades, isto é, uma interligação entre homens-terras-animais. E como destaca Krenak
(2019, p. 33), “esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como “natureza”, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela. Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sumindo, que está sendo exterminada da interface de humanos muito-humanos”. Por isso, os termos espaços ancestrais e (re)existências foram importantes nesse texto, porque destacam como os povos indígenas no Brasil, ao longo dos processos históricos, tiveram e têm processos de sobrevivências contra toda forma de colonização.
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KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora: Companhia das Letras, 2019.
BANIWA, Gersem. Língua, Educação e Interculturalidade na Perspectiva Indígena. In: ALBUQUERQUE, Gerson. Das Margens. (Org.) Rio Branco (AC): Nepan, 2016.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: História, Direito e Cidadania. São Paulo: Clara Enigma, 2012.
KAYAPÓ, E.; TERENA, N.; CANCELA, F. Diga ao povo que avance: – “Avançaremos”!!, Abatirá, v. 1, n. 2, p. 1-3, 2020.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras
MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970- 1990). São Paulo: Paulinas, 2012.