Foi agitando a bandeira do agronegócio que Gladson Cameli ganhou as eleições de 2018 para governador. Surfando concomitantemente nas ondas do bolsonarismo e do antipetismo, prometeu virar, de uma vez por todas, a página da “florestania”, atribuindo a ela a responsabilidade pelos problemas econômicos que o estado atravessa.
Porém, diferentemente do que pensou – ou quis que pensássemos -, as coisas não são tão simples quanto pintou. Hoje sua política econômica parece bifrontal, com uma face voltada mais abertamente para o agronegócio e outra, mais timidamente, voltada para as políticas ambientais.
Embora haja diversos pontos de convergência entre essas faces, não há equilíbrio possível entre elas. Uma é mais imediatista e a outra atua com as perspectivas de médio e longo prazos. Por esse e outros fatores, ou se favorece mais uma ou outra. Ao colocar um pé em cada canoa, o governo de Cameli parece fadado a fracassar em sua tentativa de dinamizar a economia local – se é que ele se coloca esse objetivo de fato.
Ainda reverberam em nossos ouvidos as palavras de Gladson Cameli, dirigidas a produtores autuados por crimes ambientais. Disse ele, ainda no início de seu governo: “Não paguem as multas. Aqui quem manda sou eu”. Como se vê, bem ao modo de um coronel de barranco – um tanto patético, cabe dizer -, incitava ao desrespeito às políticas ambientais vigentes. Mantendo a mesma toada, mais recentemente, prometeu “desburocratização”, a fim de facilitar as coisas para as madeireiras.
Todavia, a derrota de Bolsonaro e a consequente vitória de Lula abriram nova conjuntura, menos favorável à atuação do agronegócio mais retrógrado e imediatista. Tão logo tomou pose, Lula reatou laços com os parceiros estrangeiros, costurando acordos em que a proteção da Amazônia assume centralidade. Com a retomada das ações dos órgãos ambientais fiscalizadores, mesmo se quisesse, Cameli não poderia dar a vida fácil que prometeu aos agrocratas.
As dificuldades daí decorrentes explicam, em larga medida, a reorientação na política econômica local. Há que se dizer que algumas políticas ambientais foram mantidas, mesmo que à revelia de algumas frações do grupo dominante local. É que elas estavam assentadas em acordos internacionais e garantiam importantes repasses para o governo.
Percebendo a mudança de cenário, sem nenhuma preocupação com coerência ideológica, Cameli (re)criou a Secretária dos Povos Indígenas, mimetizando o que já fora feito durante os governos da Frente Popular do Acre (FPA). Num caso e noutro, a presença de representantes indígenas parece apenas cumprir a função de simular preocupação com os povos originários.
No mesmo movimento de reorientação, passou a incorporar a preocupação ambiental em seus discursos. Certamente não há de ressuscitar a “florestania”. Mas é igualmente certo que procurará colher os louros políticos e econômicos que a questão ambiental pode oferecer.
Guardemo-nos de qualquer ilusão. Na prática, o atual governo continuará empedernidamente pró-agronegócio, constituinte das “frações marrons” do capital (aquelas com poucas ou nenhuma preocupação para com a questão ambiental). O que muda agora é que ele terá que fazer concessões às políticas ambientais, aquelas que favorecem as “frações verdes” do capital (aquelas que lucram com as políticas de proteção ambiental, sejam estas efetivas ou não).
Desse modo, é justo dizer que o governo age como quem acende uma vela para Deus e outra para o Diabo. A questão, seríssima, é que, do ponto de vista da economia e das populações locais, ambas as políticas são diabólicas e tendem a manter o estado na condição de pobreza e subordinação a interesses externos.
Bem. Os resultados do favorecimento desregrado ao agronegócio já estão mais que evidenciados: poluição do ar e das águas, desmatamento em escala crescente, notável crescimento da violência e de assassinatos etc. Por isso, brevemente, deixarei algumas palavras sobre o crédito de carbono, algo considerado muito promissor para o estado.
Segundo a Companhia de Desenvolvimento de Serviços Ambientais (CDSA), entre 2005 e 2015, o estado acumulou um montante de 100 milhões de toneladas de créditos de carbono, prontos para negociação. De acordo com mesma fonte, isso representaria um valor de 564 milhões de dólares.
Num momento como o atual, em que as mudanças climáticas se fazem sentir de modo violento e até mortífero nas mais diversas latitudes do planeta, é tentador aderir a esse tipo de política. Não resta dúvida de que os outros países e organismos internacionais diversos hão de pressionar nesta direção, procurando ao menos aliviar o mal que ora lhes afeta. Localmente, querendo mostrar algum trabalho e encher os cofres, Cameli dá mostras de abertura para tal.
Como sabemos, todavia, as políticas de crédito de carbono não atacam as causas das mudanças climáticas. Para ser mais direto: elas não visam a diminuir o nível de emissão de gases de efeito estufa. Entre os interessados na compra dos créditos estão os países e as empresas responsáveis pela emissão desses gases. E, no fim, a política dos créditos funciona como uma permissão para continuar poluindo.
Na outra ponta dessa relação, as populações que habitam nos territórios envolvidos nesses contratos pouco ou nada sabem sobre suas implicações. Prometem mundos e fundos a estas populações. Mas, ao fim e cabo, tiram-lhe o fundamento de sua existência material e espiritual: o território.
Como essas negociações envolvem a manutenção dos territórios tal como estão no ato do contrato, as pessoas que neles habitam ficam impedidas de continuar a usá-los segundo suas tradicionais práticas. Entre as práticas cerceadas, encontram-se a prática da construção e a de pôr roçado, entre outras.
Por essas e outras, é lícito definir esses e outros projetos congêneres como sendo projetos de desterritorialização. Os indivíduos podem até permanecer no território. No entanto, já não podem acessá-lo como de costume. Isso significa que, no frigir dos ovos, quem paga a conta pelas mudanças climáticas são aqueles que nada devem quanto a isso. Ao contrário. Os que devem acabam lucrando com o mal que fizeram e fazem, tanto quando emitem os gases de efeito estufa e, na outra ponta, quando negociam os créditos. Os que não devem, aqueles que preservaram a floresta, pagam pelo mal que não fizeram.
E poderia ser diferente? Sob a lógica do mercado, não. Nunca. Afinal, tudo que vira mercadoria ou fonte de lucro deve ser retirado do alcance do povo. Só assim, pode ser apropriado privadamente.
Desse modo, à luz das velas acendidas por Cameli, quer sob a tirania de suas frações marrons, quer sob a tirania de suas frações verdes, o capital continua sacrificando as populações locais e a floresta em seu altar. Agindo às tontas, o governador demonstra claramente que não sabe o que fazer. Atira para todos os lados. Infelizmente, dessa forma, quem está realmente perdida é a população acreana, conduzida que vai às cegas…
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Israel Souza é professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).