O Brasil nunca superou de todo o legado da escravidão, a mais desbragada forma de exploração do trabalho. Basta verificar que toda vez que o empresariado fala em “reformar” ou “flexibilizar” as leis trabalhistas, é sempre no sentido da retirada de direitos dos trabalhadores, intentando desampará-los como for.
Falam em “modernização das leis trabalhistas, mas o que querem, de fato, é a supressão dessa legislação. Seu léxico é enganoso, lesivo ao trabalhador. Não buscam o moderno, e sim o pré-moderno.
Nessa perspectiva, os direitos trabalhistas são sempre encarados como empecilho ao desenvolvimento e ao aumento da produtividade. O trabalhador é um obstáculo, pesado fardo. Involuntariamente, o empresariado assume a existência da luta de classes, do inconciliável antagonismo de interesses, tantas vezes negado; implicitamente, sustenta que só às expensas do trabalhador ele fatura.
A verdade é que expressiva parcela da classe dominante brasileira nunca deixou de ver a classe trabalhadora como propriedade sua, coisa de que pode dispor como bem entender. Se respeita os direitos trabalhistas, não é por vontade própria, mas por força das circunstâncias. Daí seus reiterados e sistemáticos ataques à justiça do trabalho.
Vale lembrar de uma cena icônica, recente, em que Bolsonaro e o pastor Silas Malafaia diziam que há muitos direitos trabalhistas no Brasil e isso impediria a criação de mais empregos. Bolsonaro, inclusive, disse reiteradas vezes que o brasileiro deveria escolher: mais direitos, com menos empregos, ou mais empregos, com menos direitos. Na sua patetice e no seu servilismo à classe dominante, propôs até a criação de uma carteira de trabalho verde e amarela. Aceitando trabalhar no regime proposto por essa carteira, o trabalhador praticamente abriria mão de todos os seus direitos.
A conclusão é inevitável. O trabalhador sem direitos é um sonho comum à extrema direita e à fração mais reacionária da classe dominante tupiniquim.
Querem nos fazer crer que, com mais “liberdade” – leia-se menos direitos para os trabalhadores e mais exploração -, os empresários contratariam mais, garantindo, quem sabe, o pleno emprego. Todavia, como contratariam mais, se, com mais liberdade para explorar, um trabalhador seria forçado a fazer o trabalho de dois ou mais? O resultado necessário dessa equação seria menos, e não mais emprego; menos, e não mais salário, dado o aumento (intensivo ou extensivo) da jornada de trabalho em sua relação com a respectiva remuneração.
Abandonando a preocupação com as aparências, expressiva fração do empresariado resolveu encampar uma perseguição aos “esquerdistas”. Para essa fração, o bom empregado, aquele que procura prosperar no trabalho, chega mais cedo e sai mais tarde. É aquele que sequer usa as 2 horas de almoço, dispensando, igualmente, o direito ao pagamento de horas extras.
Por outro lado, ainda de acordo com aquela fração, os esquerdistas seriam péssimos empregados, porque querem sempre exigir seus direitos, sendo refratários a sua própria exploração. Resumindo: ruins são os que têm consciência de seus direitos e lutam por isso; bons são os que, mesmo tendo essa consciência, consentem em ser explorados.
Há muitas décadas, a jornada de trabalho 6×1 vigora no Brasil. 6 dias de trabalho; 1 de folga. Afetando drasticamente a vida de milhões de trabalhadores, das mais diversas idades, esse é um dos grandes temas de nossa política no momento, ganhando premência inaudita até aqui. Portanto, atravessamos oportuno momento para pensar os impactos disso na vida dos trabalhadores. Uma oportunidade de avançarmos na conquista daquilo que já é realidade em alguns países europeus: uma jornada de trabalho menor, mais humana.
Nossa jornada diária de trabalho é de 8 horas, em média. Comumente, em dois turnos, cada um com 4 horas. Nesse cômputo formal e conservador, já temos um 1/3 do nosso dia comprometido. De 24 horas, 8 horas já não pertencem ao trabalhador.
Como disse, esse é um cômputo formal e conservador, pois não leva em consideração o impacto geral dessa jornada de trabalho no tempo e na qualidade de vida dos trabalhadores. Cabe considerar que, antes de estar propriamente no trabalho – no escritório, no chão da fábrica, no caixa do supermercado ou da farmácia -, o trabalhador tem que acordar 2 horas antes de sua jornada. Assim para, em 1 hora, tomar um banho, comer alguma coisa no café, trocar de roupa, organizar algo em casa. Depois, tem que se deslocar até o local do trabalho, seja em transporte público ou privado. Nesse deslocamento, ainda numa matemática conservadora, gasta mais 1 hora.
Agora, àquelas 8 horas, somam-se mais 2, pois, embora não esteja propriamente trabalhando, não são 2 horas usadas em benefício do trabalhador. São 2 horas que ele gasta em preparação para o trabalho. Das 24 horas diárias, em razão do trabalho, o trabalhador já perdeu 10 horas.
Chega a hora do almoço, o que, geralmente, corresponde a um intervalo de 2 horas. Quem pode vai em casa, numa correria só. Todavia, nem todos podem. Então, os que não podem comem pelas ruas, pensões, barraquinhas etc. E já lá se vão mais 2 horas horas que o trabalhador gasta, não para si, mas em função do trabalho, ainda que não esteja no ambiente do trabalho.
Cumpre acrescer que alguns patrões até fornecem almoço, desde que o trabalhador retome o trabalho antes do horário estabelecido. Geralmente, isso é feito de maneira informal, porque à revelia da lei. Então, o patrão não oferece (dá) o almoço. Ao comprimir o intervalo, ele troca o almoço por mais exploração do trabalhador, diminuindo seu horário de “descanso”. Dá como uma mão, retira com outra.
Àquelas 10 horas, somam-se mais 2. Ao fim do dia, o trabalhador tem que voltar para casa, gastando mais 1 hora nesse percurso. Das 24 horas, o trabalhador com uma jornada média gasta 13 de suas horas diárias por conta do trabalho, mais da metade do dia.
Observem que não estamos considerando a jornada (dupla ou tripla) de uma mulher, dos trabalhadores que moram mais longe do local de trabalho, daqueles que, pela informalidade ou por falta de escrúpulos do patrão, são super explorados etc. Por isso, insistimos em dizer que a matemática aqui usada é conservadora, ficando aquém do que efetivamente ocorre.
A situação de nossos jovens não é menos preocupante. A fim de ter uma melhor colocação no mercado, procuram conciliar trabalho e estudo. E assim, em vez de voltar para casa (usando aquela décima terceira hora), o jovem vai para a faculdade ou faz um cursinho preparatório. Isso vai tomar umas 3 ou 4 horas a mais, se somarmos o tempo médio de deslocamento para casa.
Nessa situação, das 24 horas, o jovem trabalhador – mas não apenas ele – comprometeu entre 16 e 17 horas de seu dia. Considerando a atual jornada de trabalho, isso acontece 5 ou 6 dias por semana. As melhores horas do dia, os melhores dias da semana para alguns compromissos (como consultas médicas, expedição de documentos, participação na reunião de pais na escola do filho etc.) são assim consumidos.
Espremido e vampirizado ao longo do dia, ao chegar em casa, o trabalhador está exausto, exaurido. Por vezes, não resta energia para manter um diálogo digno desse nome com o parceiro ou parceira. Guardando um mínimo de respeito e empatia, comunica-se com seu interlocutor através de simples grunhidos, como unhum, anhã ou coisa assim. Lembra um sonâmbulo, em tudo.
Podemos imaginar uma cena… Ansioso e animado, o filho traz a bola para brincar com o pai que não viu ao longo de todo o dia. E o pai, sem mais energias, joga a bola para o mais longe que puder, de modo que o filho demore um pouco para voltar. Não resta energia para brincar efetiva e afetivamente com o filho.
Que tempo pode dar ao outro aquele que não tem tempo para si? Nessa configuração, que cuidados pode dar à família? Só a alimentação. Não é nossa intenção diminuir a importância da alimentação, mas ela, sozinha, está longe de exaurir o que é necessário para uma boa relação familiar. E o afeto? E o diálogo? E o lazer em conjunto?
Ora, o afeto só pode ser devidamente vivido naquele tempo que, do ponto de vista do capital, é inútil, naquele tempo que se “consome” gratuitamente e sem nenhum sentido além daquele de estar na presença de quem amamos…
No atual regime de trabalho, o trabalhador médio sequer tem energia para comer. Não come. Engole, sem condições de apreciar o aroma e o gosto da refeição preparada com carinho e esmero para ele. Não dorme. Apaga. Ou desmaia.
Não trabalha para viver. Vive para trabalhar. Via de regra, recebe um salário insuficiente para responder a suas necessidades. Vemos que o trabalhador, assim, vive apenas nos intervalos do trabalho. É aí onde consegue encontrar um diminuto tempo para si e para os seus.
Chegando o fim de semana, num ligeiro domingo, deve decidir se sai com sua família, para ir à missa ou ao culto. Ou vai à praça tomar um tacacá. Deve decidir se vai tomar uma cerveja e jogar bola com seus amigos… Ou se fica em casa, recuperando energia para gastar no trabalho do dia seguinte. O tempo de vida é, desse modo, ditado pelo tempo de trabalho. A vida está nas migalhas de tempo que sobrou. O homo sapiens reduzido a homo faber.
Como não sofrer? Como não adoecer? Como não cair em depressão? Os laços sociais, quando os há, são demasiado frágeis…
Nesses termos, há uma clara incompatibilidade entre o trabalho e a vida. O trabalho passa a ser é a mais radical negação da vida. Nesse sistema, o trabalhador morre aos poucos, desgastado num cotidiano cinza, árido, hostil.
Como ser feliz assim? Como ser livre assim? Como sonhar assim? Como cultivar afetos verdadeiros assim? Como ser humano assim?
Estarrece pensar que boa parte dos trabalhadores levará uma jornada assim por toda vida, sem chances de aposentadoria. A força da alienação é tamanha que alguns, mesmo depois de aposentados, não conseguem parar de trabalhar. Confundem vida com “ocupação”. Só se sentem vivos ou úteis se estiverem trabalhando. A exploração marcou de tal forma seu corpo e sua alma que eles não sabem o que fazer com o pouco tempo livre que lhes sobrou.
Desaprenderam – ou mesmo nunca chegaram a aprender – a viver. É que a vida nunca foi deles mesmo.
Personificações do capital, como dizia Marx, os capitalistas dizem Time is money (Tempo é dinheiro). Para eles que vivem fundamentalmente do trabalho dos outros, pode ser. Faz sentido. Para os trabalhadores, não. Para estes, tempo é vida. Se não têm tempo, não têm vida. Chegou a hora de mudar essa realidade.
Pelo fim da escala 6×1! Às ruas!




