Mesmo que não admitido em voz alta, todos já presenciamos ou ouvimos um relato de alguém que atravessou a rua ao ver um homem negro com medo de ser abordada e consequentemente assaltada. Esse ato, aparentemente “protetivo”, carrega um pensamento racista com origens muito mais antigas do que imaginamos. Especificamente hoje, falaremos de Cesare Lombroso que com sua obra “O Homem Delinquente” contribuiu para que pessoas negras fossem por anos e anos consideradas propensas ao crime devido sua ancestralidade.
Para os não familiarizados, Cesare Lombroso foi um psiquiatra, cirurgião, higienista, criminologista e cientista italiano que viveu entre o final do século 19 ao começo do século 20. Dentro do meio acadêmico, ele é notadamente conhecido por sua teoria da predisposição biológica expressada em vários volumes intitulados “O Homem Delinquente”.
Mas afinal de contas, o que é a teoria da predisposição genética?
Resumidamente, após estudar muitos detentos, Lombroso chegou à conclusão de que, organicamente, existiam indivíduos mais predispostos a cometer crimes motivados por diferenças genéticas. Em outras palavras: a depender de suas características herdadas de seus ancestrais, alguns indivíduos eram mais suscetíveis a cometer crimes.
Para o cientista, devido a uma herança genética, esses indivíduos em algum momento cometeriam delitos, o que poderia ser verificável em seus traços corporais, tamanho e formato do crânio e outras características, que, a depender do tipo, demostravam se essa pessoa cometeria assassinatos, roubos e etc.
Sua teoria foi amplamente aceita devido seu contexto histórico, em que o mundo recebia com entusiasmo as teorias e trabalhos sobre o Evolucionismo de Charles Darwin, que acabou gerando uma base teórica para a chamada eugenia, uma pseudociência que visava o aperfeiçoamento da raça humana, impedindo a reprodução de seres “indesejáveis” e colocando a raça ariana como superior às demais, que deveriam ser extintas.[1][2]
Nos dias de hoje essas teorias são completamente descartadas por se mostrarem insuficientes, afinal de contas, com a evolução dos estudos criminológicos, hoje se sabe que o ambiente em que o indivíduo está submetido, os problemas sociais, os traumas e diversos outros fatores influenciam a pessoa a cometer um delito. Atualmente, está superada a ideia racista de que devido ao seu crânio grande ou ao seu ancestral negro, asiático ou branco, o indivíduo carregaria então genes de incivilidade e assim, seria propenso a vida do crime.
Se sua teoria, não tem mais credibilidade, então por que falar de Lombroso?
Oras, recordemo-nos de nosso contexto acreano e o fato de que socialmente é aceito acreditar que os conhecidos como “maninhos” ou “mata-gatos” ou até mandrakes são propensos a atos criminosos, ou podemos até mesmo chamar de delinquentes natos identificáveis por suas roupas, modo de falar, etc.
Talvez você possa me rebater falando de que não há racismo aí, que é apenas uma questão de que vários outros indivíduos que se comportavam e vestiam como eles, cometeram e cometem assaltos, assassinatos, enfim, crimes.
Mas o que seria isso senão a teoria de Lombroso revivida?
Oras, perceba que a grande maioria desses jovens são negros, miscigenados e periféricos, assim como os homens que Lombroso carimbou como sendo criminosos natos; e essa crença de que essas pessoas são criminosas se baseiam em um dos pilares do racismo que é o estereótipo.
Ainda há aqueles que poderiam continuar argumentando que, se esses jovens estivessem na Universidade, não estariam submetidos a essas situações racistas. Trago, então, o caso do estudante, palestrante e youtuber Chavoso da USP (@chavosodausp), um jovem negro, universitário de periferia que foi incluído no banco de imagens da polícia para reconhecimento de suspeitos sem ter cometido nenhum crime, pura e simplesmente devido sua aparência.
[1] A Eugenia não foi, inclusive, a única pseudociência; também existiu o racismo cientifico, que, através, inclusive, do “estudo” de crânios de pessoas negras, fala da suposta existência de uma hierarquia racial, a qual justificaria o racismo sobre negros e indígenas.
[2] Apesar do próprio Darwin se manifestar de forma contrária à Eugenia, ela foi criada por seu primo, Francis Galton, em 1833.

Estes jovens recebem esses olhares tortos e amedrontados sem merecerem, simplesmente porque nos canais de comunicação, quando mencionados, são sempre associados ao crime, à vadiagem, à malandragem, assim como os escravizados recém libertados no Brasil há anos atrás, que tiveram as suas manifestações culturais e artísticas, suas práticas de lazer sempre mal-vistas e por vezes até criminalizadas, como a capoeira e o samba. Com o advento da contemporaneidade, isso não muda, o lazer da juventude negra periférica é nas ruas, com seus grafites, o hip hop, suas batalhas de rap que denunciam os abusos e a negligência que sofrem pelos órgãos públicos, seus funks, danças e roupas. Tudo o que foi acima supracitado são expressões artísticas, porém, por serem da periferia, são marginalizadas, consideradas como vulgares, associadas ao crime e consideradas como vadiagem. Jovens negros pobres como o artista estadunidense Basquiat são exceções, ter suas pinturas e grafites consideradas artes, não é comum. Aquilo que é comum na periferia, é o que é descrito pelos Racionais MC’s na música “Tô ouvindo alguém me chamar”:
“[…]Guina, eu tinha mó admiração, ó
Considerava mais do que meu próprio irmão, ó
Ele tinha um certo dom pra comandar
Tipo, linha de frente em qualquer lugar
Tipo, condição de ocupar um cargo bom e tal
Talvez em uma multinacional
É foda…
Pensando bem que desperdício
Aqui na área acontece muito disso
Inteligência e personalidade
Mofando atrás da porra de uma grade.”
Nós não levamos em conta que por viverem, em sua grande maioria, em bairros pobres, têm sim uma aproximação com esse tal mundo do crime, porém, não é por escolha, é simplesmente parte da sua realidade. Realidade essa que foi construída ao longo da história do nosso país como consequência do racismo estrutural e da desigualdade social. Para aqueles que vivem dentro da “bolha” de “pessoas de bem”, essas pessoas da periferia representam o outro.
A ameaça. E isso os deixa cegos para o fato de que essas pessoas que vivem na periferia tem dificuldade de acesso de direitos básicos, como educação, saúde, saneamento básico, moradia e lazer; e crescem expostas a um ambiente de extrema pobreza e violência, sendo segregadas a esses ambientes e ainda recebendo a culpa por isso, através, por exemplo, da violência urbana. Basta nos recordarmos que, de acordo com a pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Atlas da Violência apontou, em 2017, que pessoas de 15 a 29 anos eram os maiores alvos de homicídio no Brasil.
Adivinha onde a maioria dessas pessoas moram?
Dentro disso, esquecemos que os crimes de colarinho branco, cometidos por pessoas no topo da pirâmide social, teoricamente muito mais “civilizados” que eu e você, não são punidos e aceitamos seus roubos e desvios com facilidade. São estes crimes que criam esses ambientes periféricos, pois roubam destes jovens seus direitos constitucionais básicos, ou seja, eles são desclassificados antes mesmo de ser dado a largada. E quando esses jovens caem dentro desse sistema, como o Guina na música do Racionais MC’s, que se o Brasil não fosse um país racista e elitista[1], com os devidos apoios poderia ter frequentado a faculdade e não entrado no mundo do crime, que, como relatado na música, sequer o satisfaz.
Guina e tantos outros fizeram exatamente o que era esperado dado a situação, os culpamos e, com sangue nos olhos, queremos que eles recebam o máximo de punição possível dentro do que o sistema penal permite e por vezes até além. Os desmoralizamos e desumanizamos, e os homens de terno e gravata chamamos – aveludadamente – de doutores.
Finalizo o texto deixando a seguinte reflexão: se estes mesmos jovens, conhecidos como “mata-gatos” ou mandrakes, que tem essa estética diferente, vinda da periferia, fossem brancos e adotassem uma estética similar às das “elites”, eles nos gerariam o mesmo temor que temos ao encontrar um mandrake em uma rua deserta à noite? Lembremos o que vemos em nosso dia a dia: quando um negro é pego com uma quantidade ínfima de droga, os canais jornalísticos o taxam como traficante, já quando o mesmo acontece com uma pessoa branca, ela apenas estava em posse de entorpecentes.
[1] Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de agosto de 2020, revelou que dos jovens e adultos entre 18 e 24 anos que estão na universidade, 36% são brancos, enquanto 18% são negros.
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Cassia Iasmin de Oliveira Marinho – Pós-Graduanda em Criminologia na Faculdade Venda Nova do Imigrante (Faveni). Licenciada em História (Ufac). Membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac).