Na noite da última segunda-feira, 05, a Cidade do Povo foi palco de verdadeiras cenas de uma “guerra”, que se tornaram comuns nos últimos anos. Como todos se recordam este bairro foi projetado para melhorar a qualidade de vida de milhares de acreanos que sofriam com a falta de moradia digna.
Integrantes de uma facção criminosa fortemente armados efetuaram diversos disparos em moradores que estavam em uma quadra esportiva, e, em algumas vias públicas, ação que provocou um óbito e deixou mais de sete pessoas gravemente feridas.
Não é nenhuma novidade para a população do nosso estado que o “ataque” violento tem como motivação a disputa territorial e demais interesses das organizações criminosas envolvidas, situação que apresentamos de maneira objetiva no texto “O poder paralelo das facções no dia a dia de Rio Branco”.
Mas, o que o bairro Cidade do Povo tem em comum com outro bairro da capital Rio de Janeiro (RJ) conhecido mundialmente, inclusive roteiro de filme indicado ao Oscar, denominado Cidade de Deus?
O bairro Cidade de Deus, situado na zona oeste da capital do Rio de Janeiro, adquiriu sua estrutura urbana atual através da construção de conjuntos habitacionais em meados da década de 60, por meio de um projeto inovador baseado no conceito unidade-quadra, destinando-se a abrigar famílias sem-teto e moradores das áreas de favelas da zona sul do Rio de Janeiro sem condições mínimas de infraestrutura.
Sob o mesmo enfoque, apesar de condições diferentes, pois o conjunto habitacional tinha como propósito contemplar indivíduos que residiam em áreas alagadas ou passíveis de enchentes do Rio Acre, iniciou-se, em 2012, a construção do bairro Cidade do Povo, sendo que as primeiras casas somente foram entregues no ano de 2014.
Portanto, logo encontramos as primeiras semelhanças entre os dois bairros, ou seja, o modelo de construção e o objetivo social. Ambos nasceram com o objetivo de garantir direitos sociais e fundamentais, como cidadania, moradia digna, saneamento básico, transporte público, entre outros.
Infelizmente as características positivas e congruentes dos bairros Cidade de Deus e Cidade do Povo terminam nesses dois parâmetros.
O Estado, de uma forma geral, mantém uma atuação desproporcional na execução das políticas públicas necessárias à manutenção dos sistemas de saúde, educação e segurança, basilares a promoção da cidadania e bem estar sociais – omissões que acabam provocando as vulnerabilidades sociais.
O ato de prover habitações dignas para milhares de pessoas – sem a disponibilização de todos os instrumentos necessários para garantir inclusão social e o desenvolvimento das regiões – foi suficiente para o surgimento das incontáveis adversidades sociais.
Por isso, entre o final da década de 70 e início dos anos 80, o bairro Cidade de Deus passou a conviver sob a lei e domínio dos traficantes de drogas que posteriormente passaram a integrar as organizações criminosas, transformando a região em uma das mais violentas do país até os dias atuais.
No bairro Cidade do Povo o efeito foi similar. O tráfico de entorpecentes e crimes relacionados, como roubos, furtos e homicídios, antes sem organização, passaram a ser controlados e praticados por integrantes das facções criminosas locais em parceira com as nacionais, alcançando patamares inimagináveis para nossa população como o tiroteio ocorrido na segunda-feira (05).
É justamente no âmbito da segurança pública que fazemos uma analogia ao considerar o bairro Cidade do Povo como a Cidade de Deus do Acre.
O colega e conterrâneo delegado de polícia Rafael Marcos da Costa Pimentel pontuou em sua dissertação de mestrado pela UNB, que: “Assim, (MELO JUNIOR e MARMOS, 2016) afirmaram que a Cidade do Povo viabilizaria a curto e médio prazo o déficit habitacional de Rio Branco, retirando essas pessoas da exclusão social, de modo a proporcionar a concretização dos direitos de seus beneficiários, dificultando, dessa forma, a elevação dos índices de violência e da criminalidade na cidade de Rio Branco. No entanto, o programa foi implantado em partes, o que dificultou a presença em massa do poder público no local, proporcionando desarticulações sociais, abrindo caminho para a desordem social e a presença de organizações criminosas na região.” (grifo nosso).
Pessoalmente acompanhei o início e desenvolvimento da criminalidade na Cidade do Povo. Fui um dos primeiros profissionais da área de segurança pública a atuar na região, ainda sem uma unidade policial fixa. Coordenei dezenas de investigações e operações no bairro, onde constatei que, na prática, as ações de natureza policial-repressiva são ineficientes, pois as raízes do problema estão fixadas na ausência efetiva das políticas públicas do estado, lacunas ideias para a expansão da violência.
Os moradores do bairro Cidade do Povo respiram violência. Muitos foram expulsos das casas, que hoje estão à disposição do crime. Alguns imóveis são alugados e até vendidos pelos criminosos, em um verdadeiro “mercado imobiliário” ilegal. Outros são utilizados como depósitos de produtos adquiridos em furtos e roubos, outros em “paiol” de armas e munições.
A nossa Cidade de Deus acreana experimenta os mesmos efeitos da criminalidade do bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, famoso internacionalmente, situação que poderia ter sido evitada com planejamento e ações sistemáticas, até por que os resultados negativos de outros empreendimentos habitacionais idênticos seriam suficientes para evitar o descaso atual.
Ainda é possível reverter às condições atuais da violência e demais problemas do bairro Cidade do Povo? Sim.
A lição é simples: Não basta promover moradia digna sem a materialização de outros direitos fundamentais, principalmente em regiões afastadas dos centros urbanos. A falta de condições plenas e satisfatórias em áreas sociais como a educação, lazer e segurança, proporciona o encarceramento encoberto dos indivíduos pela dificuldade de acesso aos direitos mais básicos, impossibilitando o desenvolvimento sócio-econômico-cultural.