No próximo dia 26, a pandemia da covid – 19 completa um 1 ano desde a confirmação do primeiro caso no Brasil. No Acre, os primeiros infectados foram notificados no dia 17 de março de 2020, mesma data em que o governo estadual publicou o decreto nº 5465/2020, contendo as medidas de enfrentamento em nível local, e, reconhecendo o estado de emergência na saúde.
Durante todo esse período da pandemia a população mundial aguardou ansiosamente a fabricação de uma vacina que conseguisse frear a Covid-19. No dia 17de janeiro de 2021, os brasileiros vivenciaram um momento único, de esperança e alívio, após a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, receber a primeira dose do imunizante Coronavac no estado do São Paulo.
Com o início da vacinação, o governo federal publicou e iniciou a execução do Plano Nacional de Imunização (PNI) contra a covid-19, repassando aos estados doses de vacinas para serem distribuídas aos municípios, entes responsáveis pela execução das ações de vacinação e a gerência do estoque de vacinas.
Dias depois do início do processo de imunização no Brasil e no Acre, passamos a acompanhar, perplexos, uma avalanche de casos noticiados pelos veículos de comunicação de pessoas que desrespeitaram descaradamente a ordem de prioridade da vacinação, os chamados “fura-fila”.
O primeiro episódio que ganhou repercussão nacional aconteceu no estado vizinho do Amazonas. As irmãs gêmeas, e digitais influencers, Gabrielle e Isabelle Kirk Maddy Lins foram imunizadas no dia 19 de janeiro de 2021, após serem nomeadas, no mesmo dia, sem contrato, diretamente pelo gabinete da Prefeitura de Manaus.
Rapidamente, dezenas de outras situações semelhantes foram expostas na imprensa em todo país. No Acre não foi diferente, a situação mais inusitada ocorreu na última terça-feira (9), quando uma estagiária do curso de psicologia, sem qualquer vínculo empregatício (voluntária) com a Policlínica da Polícia Militar de Rio Branco, recebeu a primeira dose da coronavac.
O Ministério Público Estadual do Acre informou no dia seguinte a vacinação da estagiária, 10 de fevereiro, que estão sendo apuradas um total de dez denúncias sobre os “fura-filas” em todo o estado, número que possivelmente não demonstra a realidade se consideramos que nem todos as situações são objetos de denúncia.
O renomado médico Drauzio Varella tratando sobre o tema afirmou em texto publicado no jornal A folha de São Paulo:
“Profissionais formados em psicologia, biologia, veterinária, educação física, além de trabalhadores da área da saúde que nem sequer chegam perto dos doentes com Covid, são vacinados antes das mulheres e homens com mais de 80 anos. Enquanto nos entretemos com as imagens dos telejornais que mostram senhoras e senhores de 90 anos, infantilizados pelo repórter que lhes pergunta se estão felizes com a vacina, passa a boiada dos mais jovens que furam a fila. Tem cabimento vacinar veterinários, terapeutas, personal trainers, escriturários de hospitais, antes dos mais velhos, que representam mais de 70% dos mortos? É justo proteger essa gente antes dos professores, dos policiais e de outras categorias mais expostas ao vírus?”
Deixando de lado as questões relacionadas a crise moral da sociedade atual, insculpida fielmente nas condutas dos “fura-fila”, e todo processo de “demagogia” alavancado pelas mais diversas camadas sociais, resumido no lema “farinha pouca, meu pirão primeiro”, é necessário tratar da confusa e inconsistente criminalização dos que infringem a ordem de prioridade da vacinação da Covid-19.
Inúmeros especialistas em direito trataram, em entrevistas e textos, sobre a questão das normas penais a serem aplicadas para quem desrespeita a ordem de imunização no Brasil.
A análise inicial da criminalização da conduta se manifesta nas condições dos vínculos dos indivíduos que furam a fila, ou seja, é necessária a constatação se o autor é servidor público ou um particular.
Em relação aos servidores públicos que desrespeitam a ordem de priorização da vacina, o enquadramento penal vai depender da interpretação do órgão apurador e das circunstâncias do caso. Poderá ocorrer, entre os outros tipos penais, o peculato, a prevaricação, a corrupção passiva, todos previstos no Código Penal Brasileiro, além do crime previsto no artigo 33 da Lei de Abuso de Autoridade (a famosa carteirada) e improbidade administrativa.
Mas, em relação aos particulares, existe crime? Na verdade, entendemos que ainda não há criminalização da conduta de um particular que fura fila, respeitando-se os entendimentos contrários.
Nesse contexto, surgiram três projetos na Câmara Federal para colocar um fim na discussão jurídica, sendo aprovado no dia 11 de Fevereiro de 2021 o Projeto de Lei 25/2021 que seguiu para votação no Senado Federal em regime de urgência.
O Projeto de Lei 25/2021 propõe acrescentar ao código penal a infração de medida de imunização que irá atingir diretamente os particulares:
“Art. 268-A. Infringir ordem de prioridade de vacinação ou afrontar, por qualquer meio, a operacionalização de planos federais, estaduais ou municipais de imunização. Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.”
É importante ponderarmos que a pandemia da covid-19 é atualmente um dos maiores desafios da humanidade, inclusive para gestores públicos, cientistas e especialistas que precisam encontrar soluções e tomar decisões. Mas, queremos chamar atenção para a falta de criminalização dos “fura-fila”, e, a recorrente edição de leis atemporais no Brasil.
Ainda no dia 6 de fevereiro de 2020, antes do início da pandemia no Brasil, o governo federal editou a Lei 13.979/20, que dispôs sobre as medidas para enfrentamento da covid – 19 prevendo que o descumprimento da norma acarretaria responsabilizações na seara penal. De lá para cá, 01(um) ano se passou e muitas alterações foram feitas na lei, mas nenhuma conseguiu prever antecipadamente a necessidade de criminalizar a conduta dos “fura-fila”.
A falta da previsão legal para punir os “fura-fila”, apesar da existência de Projeto de Lei em tramitação, vem provocando o fenômeno inconcebível da impunidade em duas frentes.
A primeira está relacionada ao fato de que os particulares que praticarem a conduta de desrespeitar a ordem de prioridade da vacinação da covid-19 não poderão sofrer qualquer sanção penal. Isso porque a lei penal brasileira segue o princípio basilar da anterioridade, ou seja, para que uma conduta se constitua infração e sujeite seu autor a uma pena, é obrigatória a prévia existência da lei definindo o fato criminoso e definindo a pena a ser imposta.
A segunda frente diz respeito à omissão dos poderes legislativo e executivo na aprovação antecipada de normas penais para punir os excessos e o “jeitinho brasileiro” em tempos de pandemia. Nosso país está acostumado a aprovar leis em caráter emergencial ou influenciado por um fato social pontual, situação que na maioria das vezes torna a norma tecnicamente frágil e atemporal.
Percebe-se que a ausência de criminalização para os “fura-fila” que não mantem vínculos empregatícios públicos, alimenta o processo da impunidade em todo país, além da demagogia daqueles que afirmam que penas serão aplicadas nesses casos.
Como cidadãos devemos exigir do poder público a antecipação da atuação coerente e firme no combate a todas as formas de condutas reprováveis, principalmente durante um período tão crítico que estamos vivendo com a pandemia. Chega de impunidade! Chega de demagogia!