Eminentes leitores! Na coluna de hoje um pequeno artigo que eu gostaria de ter escrito, mas que foi pensado e concebido por Frei Betto, um frade dominicano que nos longínquos idos de 2001 já antevia que a nova religião seria o consumo (desenfreado, frenético, auto afirmativo e predatório).
Vale cada minuto da leitura.
Que pensemos e reflitamos sobre! Agora, o texto:
O Financial Times, de Londres, noticiou que a Young & Rubicam, uma das maiores agências de publicidade do mundo, divulgou a lista das dez grifes mais reconhecidas por 45.444 jovens e adultos de 19 países. São elas: Coca-Cola (35 milhões de unidades vendidas a cada hora), Disney, Nike, BMW, Porsche, Mercedes-Benz, Adidas, Rolls-Royce, Calvin Klein e Rolex.
As marcas são a nova religião. As pessoas se voltam para elas em busca de sentido, declarou um diretor da Young & Rubicam. Disse ainda que essas grifes possuem paixão e dinamismo necessários para transformar o mundo e converter as pessoas em sua maneira de pensar.
A Fitch, consultoria londrina de design, no ano passado realçou o caráter divino dessas marcas famosas, assinalando que, aos domingos, as pessoas preferem o shopping à missa ou ao culto. Em favor de sua tese, a empresa evocou dois exemplos: desde 1991, cerca de 12 mil pessoas celebraram núpcias nos parques da DisneyWorld, e estão virando moda os féretros da marca Halley, nos quais são enterrados os motoqueiros fissurados em produtos Halley-Davidson.
A tese não carece de lógica, Marx já havia denunciado o fetiche da mercadoria. Ainda engatinhando, a Revolução Industrial descobriu que as pessoas não querem apenas o necessário. Se dispõem de poder aquisitivo, adoram ostentar o supérfluo. A publicidade veio ajudar o supérfluo a se impor como necessário.
A mercadoria, intermediária na relação entre seres humanos (pessoa-mercadoria-pessoa), passou a ocupar os polos (mercadoria-pessoa-mercadoria). Se chego à casa de um amigo de ônibus, meu valor é inferior ao de quem chega de BMW. Isso vale para a camisa que visto ou para o relógio que trago no pulso. Não sou eu, pessoa humana, que faço uso do objeto. É o produto, revestido de fetiche, que me imprime valor, aumentando a minha cotação no mercado das relações sociais. O que faria um Descartes neoliberal declarar: Consumo, logo existo. Fora do mercado não há salvação, alertam os novos sacerdotes da idolatria consumista.
Essa apropriação religiosa do mercado é evidente nos shopping centers, tão bem criticados por José Saramago em A Caverna. Quase todos possuem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. São os templos do deus mercado. Neles não se entra com qualquer traje, e sim com roupa de missa de domingo. Percorrem-se os seus claustros marmorizados ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Ali dentro tudo evoca o paraíso: não há mendigos nem pivetes, pobreza ou miséria. Com olhar devoto, o consumidor contempla as capelas que ostentam, em ricos nichos, os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode pagar à vista se sente no céu; quem recorre ao crediário, no purgatório; quem não dispõe de recurso, no inferno. Na saída, entretanto, todos se irmanam na mesa eucarística do McDonalds.
A Young & Rubicam comparou as agências de publicidade aos missionários que difundiram pelo mundo religiões como o cristianismo e o islamismo. As religiões eram baseadas em ideias poderosas que conferiam significado e objetivo à vida, declarou o diretor da agência inglesa.
A fé imprime sentido subjetivo à vida, objetivando-as na prática do amor, enquanto um produto cria apenas a ilusória sensação de que, graças a ele, temos mais valor aos olhos alheios. O consumismo é a doença da baixa autoestima. Um São Francisco de Assis ou Gandhi não necessitava de nenhum artifício para centrar-se em si e descentrar-se nos outros e em Deus.
O pecado original dessa nova religião é que, ao contrário das tradicionais, ela não é altruísta, é egoísta; não favorece a solidariedade, e sim a competitividade; não faz da vida dom, mas posse. E o que é pior: acena com o paraíso na Terra e manda o consumidor para a eternidade completamente desprovido deste lado da vida.
A crítica do fetiche da mercadoria data de oito séculos antes de Cristo, conforme este texto do profeta Isaías: O carpinteiro mede a madeira, desenha a lápis uma figura, trabalha-a com o formão e aplica-lhe o compasso. Faz a escultura com medidas do corpo humano e com rosto de homem, para que essa imagem possa estar num templo de cedro. (…) O próprio escultor usa parte dessa madeira para esquentar e assar seu pão; e também fabrica um deus e diante dele se ajoelha (…) e faz uma oração, dizendo: Salva-me, porque tu és o meu Deus!‚ (44,13-17).
Da religião do consumo não escapa nem o consumo da religião, apresentada como um remédio miraculoso, capaz de aliviar dores e angústias, garantir prosperidade e alegria. Enquanto isso, Ele tem fome e não lhe dão de comer (Mateus 25, 31-40).
Artigo publicado no Jornal de Ciência e Fé em abril de 2001, ano 2, nº 29
E aí, meu caro leitor, qual é a sua religião?